Cinco Minutos de Filosofia do Direito — Gustav Radbruch
CINCO MINUTOS DE FILOSOFIA DO DIREITO — GUSTAV RADBRUCH.
Primeiro minuto
Ordens são
ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo
que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber
que a ordem recebida visa a prática dum crime, o jurista, desde que há cerca de
cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece exceções deste
gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes
devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na generalidade dos
casos, tiver do seu lado a força para se fazer impor. Esta concepção da lei e
sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e
os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas.
Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que
só onde estiver a segunda estará também o primeiro.
Segundo minuto
Pretendeu-se
completar, ou antes, substituir este princípio por este outro: direito é tudo
aquilo que for útil ao povo. Isto quer dizer: arbítrio, violação de tratados,
ilegalidade serão direito desde que sejam vantajosos para o povo. Ou melhor,
praticamente: aquilo que os detentores do poder do Estado julgarem conveniente
para o bem comum, o capricho do déspota, a pena decretada sem lei, ou sentença
anterior, o assassínio ilegal de doentes, serão direito. E pode até significar
ainda: o bem particular dos governantes passará por bem comum de todos. Desta
maneira, a identificação do direito com um suposto ou invocado bem da
comunidade, transforma um “Estado-de-Direito” num “Estado-contra-o-Direito”.
Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés:
só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.
Terceiro minuto
Direito quer
dizer o mesmo que vontade e desejo de justiça. Justiça, porém, significa:
julgar sem consideração de pessoas; medir a todos pelo mesmo metro. Quando se
aprova o assassínio de adversários políticos e se ordena o de pessoas de outra
raça, ao mesmo tempo que ato idêntico é punido com as penas mais cruéis e
afrontosas se praticado contra correligionários, isso é a negação do direito e
da justiça. Quando as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de
justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os
direitos naturais da pessoa humana, então carecerão tais leis de qualquer
validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os
primeiros a recusar-lhes o caráter de jurídicas.
Quarto minuto
Certamente,
ao lado da justiça o bem comum é também um dos fins do direito. Certamente, a
lei, mesmo quando má, conserva ainda um valor: o valor de garantir a segurança
do direito perante situações duvidosas. Certamente, a imperfeição humana não
consente que sempre e em todos os casos se combinem harmoniosamente nas leis os
três valores que todo o direito deve servir: o bem comum, a segurança jurídica
e a justiça. Será, muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva ou
injusta, deverá ainda reconhecer-se validade por amor da segurança do direito;
ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deverá ser
recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente gravada na consciência
do povo de todos os juristas: pode haver leis tais, com um tal grau de
injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade e até o caráter
de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negados.
Quinto minuto
Há também
princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer
preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não
poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e
quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu
pormenor, envoltos em graves dúvidas. Contudo o esforço de séculos conseguiu
extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos
direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo
universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático ceticismo poderá
ainda levantar quaisquer dúvidas.
Na linguagem
da fé religiosa estes mesmos pensamentos acham-se expressos em duas passagens
do Novo Testamento. Está escrito numa delas (S. Paulo, Aos romanos, 3, 1):
“deveis obediência à autoridade que exerce sobre vós o poder”. Mas numa outra
(Atos dos Apost., 5, 29) está escrito também: “deveis mais obediência a Deus do
que aos homens”. E não é isto aí, note-se, a expressão dum simples desejo, mas
um autêntico princípio jurídico em vigor. Poderia tentar-se resolver o conflito
entre estas duas passagens, é certo, por meio de uma terceira, também do
Evangelho, que nos diz: “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de
César”. Tal solução é, porém, impossível. Esta última sentença deixa-nos
igualmente na dúvida sobre as fronteiras que separam os dois poderes. Mais: ela
deixa afinal a decisão à voz de Deus, àquela voz que só nos fala à consciência
em face de cada caso concreto.
Gustav
Radbruch
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